Título original: Casa Grande
por Luiz Felipe Pondé para Folha
Sou um acadêmico. Adoro dar aula, estudar, participar de seminários. O milagre de ver os olhos de um aluno transparecer a experiência do conhecimento é um prazer imenso. Todo dia agradeço a Deus pela coragem de ter trocado a medicina pela filosofia, ainda que, no fundo, continue vendo o mundo com os olhos do médico.
A medicina impregna a alma com a percepção da fragilidade da fronteira entre fisiologia e patologia.
Mas nem por isso deixo de ver que minha tribo padece de contradições específicas, e que, em nosso caso, podem ser bem dramáticas, uma vez que somos responsáveis pela produção de grande parte do conhecimento público.
Uma dessas contradições é a relação entre universidade e elite. Para alguns, universidade é elite e pronto, e só assim realiza bem sua função. Sou um desses. Já na Idade Média, fosse Paris, Oxford ou Salamanca, era coisa de elite.por Luiz Felipe Pondé para Folha
Sou um acadêmico. Adoro dar aula, estudar, participar de seminários. O milagre de ver os olhos de um aluno transparecer a experiência do conhecimento é um prazer imenso. Todo dia agradeço a Deus pela coragem de ter trocado a medicina pela filosofia, ainda que, no fundo, continue vendo o mundo com os olhos do médico.
A medicina impregna a alma com a percepção da fragilidade da fronteira entre fisiologia e patologia.
Mas nem por isso deixo de ver que minha tribo padece de contradições específicas, e que, em nosso caso, podem ser bem dramáticas, uma vez que somos responsáveis pela produção de grande parte do conhecimento público.
O pensador conservador e historiador das ideias americano Russel Kirk, já nos anos 50 (recomendo fortemente a leitura do seu livro "Academic Freedom", de 1955), advertia-nos acerca da "proletarização" das universidades, na medida em que ela passava a ser uma opção de ascensão social para a classe média e "gente sem posses".
Hoje, isso é fato. A forma como "carreira salarial" e "produção acadêmica" se relacionam e se confundem no cotidiano da gestão universitária na forma de "critério de qualidade" é uma prova cabal do argumento de Kirk. O fato é que quase sempre a discussão sobre "reconhecimento da produtividade" só vale se for materializado em ganho salarial, apesar das tentativas de maquiarmos o fato. No fundo, é quase tudo uma polêmica sobre folha de pagamento.
Mas não é disso que quero falar. A relação entre universidade e elite tem outras nuances que apontam para as contradições do mundo contemporâneo e sua relação com a ideia de "democratização do ensino". A vocação da universidade no cenário da democracia se confunde com a ideia de universalizar a formação superior ao mesmo tempo em que deve formar quadros técnicos de gestão da sociedade, da ciência e da cultura superior.
Daí que seja comum minha tribo tomar a palavra pública em favor da "democratização do ensino" e da "democracia nas instâncias internas da universidade". Aqui surgem duas das contradições às quais me refiro.
A primeira tem a ver, no Brasil, com a abertura de universidades às centenas e em quase toda esquina, quase sempre com qualidade duvidosa. "Universidades a R$ 399,90 por mês."
Contra essa tendência, colegas gritam, com razão, denunciando a má formação em questão. Mas o fato é que democratização significa quase sempre "barateamento do produto". Para muita gente pobre cursar universidades públicas ou particulares de renome e tradição é impossível, seja pelo restrito número de vagas, seja pelo alto custo financeiro.
A verdade é que o caráter elitista travestido de "democrático" da minha tribo revela aqui a falsidade de sua natureza e a alienação típica de quem vive regado a leite de pato na casa grande. Não se pode democratizar garantindo "vinho francês pra todo mundo". Basta vermos o barateamento do voto à medida que a democracia brasileira assimila suas classes C e D.
Universidade boa é coisa cara e brasileiro não tem dinheiro.
A segunda é pior ainda. Muitos de nós mentimos sobre a "democracia" e a transparência interna da universidade.
Devido muito ao hábito oligárquico de nosso país, "estrelas" da elite das grandes universidades, publicamente "implicadas" com democracia e transparência, no cotidiano da universidade agem como o mais comum "senhor da casa grande", buscando garantir gerações futuras do quadro docente dentro do seu grupo de discípulos, realizando um verdadeiro "bullying" contra integrantes de grupos institucionalmente mais frágeis.
A universidade é dilacerada por lobbies internos que fazem dela um exemplo típico das oligarquias da "casa grande e senzala". O uso da burocracia interna faria qualquer "peemedebista" chorar de inveja. Quem for inocente que atire a primeira pedra.
> A história é feita por poucos porque a maioria é medíocre.
julho de 2010
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